O ESCARAVELHO SAGRADO


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DEUS criador, de acordo com a cosmogonia de Heliópolis, o deus-Sol era retratado sob várias formas, tais como um homem barbado usando a coroa dupla do faraó (Atum), ou um falcão (). Outra destas formas era a de um escaravelho ou a de um homem com um escaravelho no lugar da cabeça. Nesse caso o bichinho simbolizava o deus Khepra (escaravelho, em egípcio) e sua função era nada menos que a de mover o Sol, como movia a bolazinha de excremento que empurrava pelos caminhos. Associados à idéia mitológica de ressureição, os escaravelhos eram motivo freqüente das peças de ourivesaria achadas nos túmulos egípcios. Um exemplo disso é essa jóia em forma de escaravelho, encontrada no túmulo de Tutankhamon (c. 1333 a 1323 a.C.) e atualmente exposta no Museu Egípcio do Cairo. Ela tem 10,5 cm de largura, é confeccionada em ouro, cornalina, turquesa, lápis-lazúli, feldspato e calcita e representa Khepra alado, imagem do Sol levante. Para ver outra foto dessa peça, clique aqui.

ESSA FORMA QUE O DEUS-SOL ASSUMIA, ou seja, a de Khepra, o escaravelho sagrado, era, por sinal, muito importante. O egiptólogo Alan Shorter nos esclarece: esse inseto tem por hábito alimentar-se de um grãozinho de esterco, que ele fica revolvendo entre as pernas até escavar no chão um buraco para devorá-lo.

OS EGÍPCIOS, CONFUNDINDO esse grão usado para a alimetação com o grão de esterco, em formato de pêra, sobre o qual a fêmea punha o seu ovo e que ficava enterrado no solo até a época do choco, viam no escaravelho um símbolo do deus-Sol, que todos os dias, de leste a oeste, rolava a sua esfera pelos céus. Da bolinha de esterco saía um inseto vivo, aparentemente autoconcebido; do mesmo modo, a vida também fora criada pelo Sol, sendo que o deus-Sol, criador de todas as coisas, era, como o escaravelho, autoconcebido.

O VELHO ESCARAVELHO MORRE, mas do ovo que fecundou sai outro escaravelho, como a alma se escapa da múmia e sobe para o céu. Assim, o inseto era, para os egípcios, o símbolo da vida que se renova eternamente a partir de si mesma.

ORADICAL EGÍPCIO KHEPER significa várias coisas, dependendo do contexto, principalmente o verbo criar ou transformar, e é também a palavra para escaravelho. É ainda interessante salientar que a palavra egípcia que significa aquele que vem a ser é homófona de escaravelho e este tornou-se símbolo do deus ao vir a ser, do Sol nascente, da recapitulação diária da criação.

AQUELE QUE EM VIDA trouxesse consigo uma imagem do escaravelho garantia, de certa forma, a persistência no ser e aquele que levasse essa imagem para a tumba tinha certeza de renascer para a vida. O escaravelho era, assim, o amuleto preferido de vivos e mortos. Os guerreiros, por exemplo, traziam um brilhante escaravelho gravado no selo de seus anéis. Segundo o historiador grego Plutarco (c. 50 a 125 d.C.), os egípcios acreditavam que essa espécie não possui fêmeas, todos são machos e, assim, o escaravelho designava o homem macho ou valoroso. No Império Médio (c. 2040 a 1640 a.C.) os peitorais e colares ornados com escaravelhos eram o orgulho das damas nobres. Alguns eram admiráveis. Na figura ao lado, nesse colar bastante complexo, em ouro decorado de lápis-lazúli, cornalina e outras pedras semi-preciosas, encontrado no túmulo de Tutankhamon e exposto hoje em dia no Museu Egípcio do Cairo, o deus solar Khepra aparece nada menos do que cinco vezes sob o aspecto de um escaravelho. Falcões formam a extremidade superior do colar enquanto que cobras, simbolizando os dois países, constituem o fecho da jóia. O grande escaravelho da parte inferior da peça é representado como o mestre da barca solar.

O ESCRITOR KURT LANGE nos conta que os escaravelhos eram encontrados por toda parte, no nome de numerosos faraós, nas paredes das tumbas reais, nos túmulos dos particulares, nos templos, na superfície dos obeliscos, nas estelas. Os escaravelhos egípcios estão espalhados agora por todos os museus do mundo; há deles cerca de dez mil, somente da pedra verde chamada esteatita.

OS ESCARAVELHOS destinados aos mortos têm sua face inferior tratada com o maior realismo. Geralmente são escaravelhos-corações, amuletos de pedra dura que eram depositados no lugar do coração, no peito da múmia. Muitas vezes o escaravelho está incrustado numa moldura retangular, fixada sobre o peito do morto. Tais amuletos foram encontrados também no tórax de certos animais sagrados. O que vemos ao lado é feito de rocha parda e mede 8,6x6,1 cm e 3,2 cm de espessura. Datado do Império Novo (c. 1550 a 1070 a.C.), sua proveniência é desconhecida e pertence ao Museu do Louvre. Está circundado de ouro e nele ainda se vê um fragmento de alça de metal que servia para pendurá-lo no pescoço da múmia. Pertenceu, conforme diz a inscrição, a um marinheiro do rei, de nome Imenneb. O capítulo XXX do Livro dos Mortos apresenta as fórmulas que devem ser ditas diante de um escaravelho de jaspe verde, rodeado de uma cinta de cobre purificado e circundado por um anel de prata, colocado no pescoço do morto.

POIS É JUSTAMENTE A transcrição do capítulo XXX do Livro dos Mortos o que vemos gravado na parte inferior dessa peça. Aqui o coração é interpelado e desempenha o papel da consciência pois, de acordo com a teologia menfita, ele é a sede do pensamento, a fonte da ação. Ele também é o dinamismo que dá o movimento aos membros, o funcionamento aos sentidos, a visão aos olhos, a audição às orelhas, a respiração ao nariz. Da idéia de que o falecido era julgado no além e sua alma pesada na balança, nasceu o símbolo da consciência individual: o coração com os pensamentos secretos guardados bem no seu âmago. Por isso, o homem exorta com terror seu coração justiceiro:

Ó meu coração maternal, ó meu coração maternal, meu coração de diferentes idades [de minha vida],
não testemunhe contra mim,
não tome partido contra mim no tribunal,
não faça pender contra mim a balança do pesador,
pois tu és a força que está em meu ventre,
o modelador que deu vida a meus membros;
então, tu atingirás o bom destino que nos é prometido.
Não me calunie junto da assembléia que faz comparecer
os homens,
E isso se passará bem para nós,
Isso se passará bem para nossos juízes,
E aquele que resolver as causas estará feliz.
Não digas mentira contra mim,
A decisão depende de ti, Osiris, "marinheiro do rei", Imenneb.
ASSIM — ESCLARECE A EGIPTÓLOGA ELISABETH DELANGE — a decisão do Julgamento é devolvida à responsabilidade do morto que se encontra revelado, a consciência posta a nu diante do tribunal do Mundo Inferior, do qual ninguém escapará. O coração de pedra não substitui o coração de carne. Ele conjura todas as ameaças e sobretudo aumenta a sua eficácia mágica. Porém mais que uma garantia, mais que um substituto, graças ao poder concreto da palavra, o coração-escaravelho "antecipa" e predispõe um julgamento favorável.


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