CARTUCHO DE PTOLOMEU Mas afinal, de que maneira Champollion chegou à decifração dos hieróglifos? A primeira palavra do texto em grego da pedra de Roseta que ele identificou entre os hieróglifos foi o nome de Ptolomeu, formado por oito sinais envolvidos por um cartucho. Inicialmente teve dificuldades em interpretar os símbolos porque continuava apegado à idéia de que a escrita egípcia era ideográfica. Quando raciocinou que por ser um nome grego, ou seja, estrangeiro, dificilmente poderia ter sido grafado com ideogramas, e que provavelmente fora escrito da maneira como era pronunciado, procurou transpor o nome da língua grega para a egípcia. Para alcançar esse objetivo o linguista francês percorreu um caminho reverso. Partindo da forma grega do nome, Ptolemaios, verteu o nome, som a som, do grego para o copta, deste para o demótico, daí para o hierático e, finalmente, para os hieróglifos. O resultado a que chegou foi Ptolmys. Embora ele soubesse que sinais inscritos em uma elípse indicavam o nome de um faraó, não sabia estabelecer o sentido da leitura e, assim, não era possível descobrir a correspondência entre as letras e os hieróglifos.

CARTUCHO DE CLEÓPATRAQuando Champollion teve acesso à inscrição de um obelisco descoberto em Philae, as coisas se tornaram mais claras. O monumento também continha um texto grafado em hieróglifos, demótico e grego, no qual aparecia o nome de outro faraó, Ptolomeu Evergetes II, e, pelo que pode ser deduzido pela inscrição grega ao pé do obelisco, o de sua esposa Cleópatra III. Comparando os cartuchos de Ptolomeu e Cleópatra, notou que possuíam em comum os sinais que representavam as letras P, T, O e L. Havia um pequeno complicador porque os dois sinais para a letra T eram diferentes em ambos os cartuchos. Ele deduziu, porém, acertadamente, que eram sinais homófonos, isto é, eram símbolos iguais para o mesmo som como o que acontece, por exemplo, com F e PH. A conclusão lógica foi a de que alguns hieróglifos tinham mesmo o valor de letras. Desse ponto em diante seus trabalhos tomaram rumo decisivo. A partir das quatro letras conhecidas foi possível deduzir, por suas posições, as que faltavam. Passou a contar, então, com um total de 12 fonogramas identificados. Aplicou-os a um terceiro cartucho e conseguiu decifrar o nome de Alexandre, escrito como Alksentrs.

Na evolução dos estudos, Champollion começou a deduzir os princípios da escrita egípcia. Considerando os símbolos isoladamente e tomando seus nomes em copta, percebeu a equivalência entre o valor do hieróglifo e a primeira letra da palavra naquela língua. Por exemplo, o leão, pronunciado labor em copta, tinha o valor da letra L; o desenho da mão, toot em copta, tinha o valor da letra T; o desenho da boca, ro em copta, tinha o valor da letra R, e assim sucessivamente. Partindo de sons simples assim isolados e aplicando seus valores fonéticos em todos os trechos em que apareciam, ele buscava, a seguir, ajuda no texto grego para imaginar que som, em copta, poderia ter a tradução de determinada palavra grega. Até aqui ele estava convencido de que o seu método de tradução funcionaria com todos os nomes não egípcios. Tendo reunido cartuchos do período greco-romano da história egípcia, Champollion conseguiu decifrar 79 nomes de reis para os quais identificou todas as letras. Quando, finalmente, em setembro de 1822, examinou cartuchos de nomes de faraós puramente egípcios — Ramsés e Tutmés (Tutmósis) — e conseguiu decifrá-los, percebeu que havia encontrado realmente a chave do entendimento da escrita hieroglífica.

Decifrar o significado dos sinais hieroglíficos e mesmo ler nomes de reis de pouco adiantaria se não fosse possível traduzir os textos nos quais esses elementos estavam inseridos. Um dos principais fatores que permitiram a tradução foi o fato da língua copta ter sobrevivido até o século XVI da nossa era como a língua da população cristã do Egito. Mesmo na atualidade ela ainda é lida, embora não entendida, nas igrejas coptas. Seu vocabulário é constituido de palavras egípcias suplementadas por um considerável número de palavras emprestadas diretamente do grego. Profundo conhecedor do copta que era, Champollion tinha condições de traduzir palavras gregas da pedra de Roseta para aquela língua. Depois que descobriu os princípios da escrita egípcia, passou a procurar nos locais adequados do trecho em hieróglifos as palavras cujas "letras" correspondiam àquelas das suas traduções em copta. A tarefa era dificultada pelo fato dos egípcios não separarem as palavras umas das outras. Na medida em que aumentou o número de hieróglifos decifrados, ele inverteu o processo e passou a traduzir para o copta palavras que ele podia ler em hieróglifos e, assim, entender o seu significado. Havia limitações nesse esquema porque eram poucas as palavras egípcias que haviam sido preservadas em copta e outras haviam sido tão deturpadas nessa última linguagem que era difícil reconhecer suas origens no idioma egípcio. Nos casos em que o copta não podia ajudar na interpretação de uma palavra, Champollion recorria a métodos dedutivos, baseado nas várias ocorrências de uma mesma palavra em contextos diferentes, ou ao hebreu, idioma no qual foram preservadas muitas palavras do tronco comum semítico, as quais também foram incorporadas à linguagem egípcia. Desta maneira os egiptólogos puderam fazer a leitura de praticamente todos os sinais hieroglíficos e entender o significado de grande parte do vocabulário egípcio.

O grande mistério que envolvia a decifração dos hieróglifos era devido ao fato de que a estrutura desse sistema de escrita combina três categorias de símbolos: os fonogramas (do grego phone = som + gramma = caracteres escritos), os ideogramas (do grego idea = idéia + gramma = caracteres escritos) e os determinativos. Ao contrário do que geralmente se pensa, a escrita hieroglífica é em parte fonética. Muitos dos símbolos funcionam como fonogramas, ou seja, são sinais gráficos que representam um som fundamental (fonema) ou uma sequência de fonemas. Nesses casos se emprega uma imagem não para significar o que ela representa, mas apenas pelo valor fonético daquilo que ela representa. Por exemplo: a figura de uma lebre não é usada geralmente para escrever lebre, mas sim para grafar os dois sons fundamentais que entram na palavra que significa lebre em egípcio, isto é, o W e o N. Os fonogramas são sempre consonantais, pois a escrita hieroglífica não grafa as vogais. A prática usual dos estudiosos ao traduzirem um texto hieroglífico consiste em intercalar entre as consoantes as letras e ou o, mas isso é meramente convencional. É por isso que os nomes próprios egípcios de faraós e personagens importantes são grafados por vezes de formas diferentes.

Há três categorias de fonogramas. Aqueles que representam apenas um som são chamados de sinais "alfabéticos". Eles formam um pequeno conjunto cujos componentes equivalem, aproximadamente, do ponto de vista sonoro, às letras do nosso alfabeto. A figura da boca, por exemplo, representa a letra R; o desenho da mão, a letra T e um pedaço de tecido dobrado, a letra S. Os fonogramas que representam dois sons, isto é, sinais que grafam uma sequência de duas "letras", chamados de biliterais, são, teoricamente, mais de 600, considerando-se o número de combinações possíveis com os diversos sinais "alfabéticos". Na prática, apenas 90 eram empregados. Alguns exemplos são o desenho de uma cesta, representando as letras NB; a figura de uma lebre, significando WN; um rosto, indicando as letras HR. Finalmente, os fonogramas que representam três sons, ou seja, grafam uma sequência de três "letras", denominados triliterais, são cerca de 60. Entre eles figuram um coração e uma traquéia, símbolo das letras NFR; uma tira de sandália, que era lida como NKH e um pão sobre uma esteira, grafia das letras HTP.

Enquanto que os fonogramas grafam a palavra decompondo-na em seus sons fundamentais, os ideogramas escrevem-na de maneira global. Eles indicam o significado de uma palavra pictoricamente, sem mostrar como deve ser lida. Exemplificando: posso escrever Sol foneticamente; mas também posso escrever ideograficamente, empregando o desenho do Sol. Os símbolos empregados como ideogramas significam aquilo que eles representam e outras idéias que possam estar associadas a ele. O ideograma do Sol, por exemplo, pode significar o astro em si ou qualquer outra palavra de sentido associado ao Sol e suas características como luz, brilho, dia, pôr-do-Sol, etc. O ideograma de um barco pode significar vários tipos de embarcação como bote, barcaça, navio e também verbos referentes à navegação. Para distinguir uma palavra da outra os egípcios usavam os sinais determinativos, como veremos mais adiante.

Nessa categoria dos ideogramas, quando a idéia é abstrata e difícil de exprimir com uma só figura, seria natural que os escribas criassem uma espécie de enigma figurado combinando duas ou mais imagens para escrever a palavra. E eles faziam exatamente isso. Em português, por exemplo, poderíamos desenhar a figura de um bochechudo deus dos ventos e um rosto contraído para escrever a palavra ardor. A relação entre representação e significado pode ser direta ou indireta. É direta, por exemplo, quando se mostra um contorno com um palácio no ângulo para significar recinto, palácio. É indireta, por exemplo, quando se mostra um falcão para significar o nome do deus Hórus. Dos aproximadamente 700 hieróglifos que eram de utilização frequente no cotidiano, pelo menos 100 sempre permaneceram ideográficos e nunca se tornaram símbolos fonéticos. É curioso notar que um sinal ideográfico, além de representar a palavra que retratava, também podia exercer o papel de um determinativo para a representação fonética da mesma palavra. Exemplificando: o desenho de um obelisco, palavra grafada tekhen em egípcio, podia significar exatamente isso — obelisco. Mas também podia vir após os hieróglifos fonéticos das consoantes t+kn+n como um determinativo do significado da palavra obelisco.

Finalmente, os determinativos são sinais que, colocados no final de uma palavra, têm a função de indicar em que classe semântica se enquadra a palavra que eles determinam. São, portanto, classificadores, puramente gráficos, e sem correspondentes na língua falada. Por exemplo: tudo aquilo que implica a idéia de violência é seguido pelo sinal de um braço armado; termos que designam seres de prestígio se encerram com um homem barbudo sentado; o determinativo de água se emprega com as palavras que designam as grandes extensões de água, os líquidos, e mesmo com aquelas que significam ter sede ou matar a sede. Embora os determinativos não fossem de uso obrigatório, tinham importante papel na escrita. Permitiam, por exemplo, que se fizesse a distinção entre palavras homófonas. Os termos ser estabelecido e sofrer eram escritos da mesma maneira: MeN. O que distinguia as duas palavras era o determinativo de abstrato (um papiro selado), no primeiro caso, e o determinativo de mal (um pardal), no segundo. O professor Lionel Casson nos mostra um outro exemplo: As letras hnu podiam ser pronunciadas como qualquer coisa desde hiniu a ohanou e ter vários sentidos diferentes. Por isso a palavra nunca é encontrada sem um de vários determinativos: um vaso de cerveja para indicar a palavra de uma medida para líquidos; um homem fazendo o sinal ritual de regozijo para indicar a palavra correspondente a alegria, e as figuras de um homem e de uma mulher sobre um símbolo de plural (três traços paralelos) para indicar a palavra que significava vizinhos ou companheiros. Graças a esse sistema, os egípcios podiam usar o mesmo grupo de letras para indicar até 10 palavras inteiramente diferentes.

Ainda para esclarecer o emprego dos determinativos, façamos de conta que queremos escrever com hieróglifos palavras da língua portuguesa. Tomemos, por exemplo, a palavra ramo. O desenho de um ramo de árvore pode representar não só a palavra ramo em si, mas também todas as palavras que contenham o grupo consonantal RM: Roma, aroma, remo, arma, rima, Remo, etc. Ao escrever uma frase como cortei um ramo de árvore o hieróglifo do ramo seria usado sem qualquer determinativo. Nos demais casos o ramo seria acompanhado por um hieróglifo que representasse cidade, para a palavra Roma; um nariz, para a palavra aroma; um remo, para a palavra remo; um braço armado para a palavra arma; um sinal de conceito abstrato (um papiro selado), para a palavra rima e um homem sentado para o nome próprio Remo. Se quisséssemos esquever Rômulo, acrescentaríamos ao ramo a letra L (a figura de um leão) e mais um homem sentado para indicar tratar-se de um nome próprio. Além de servir muito adequadamente para distinguir palavras homófonas, o determinativo tinha a vantagem de delimitar as palavras dentro da sucessão contínua dos sinais da escrita, já que não havia espaços em branco entre elas. São essas, portanto, as três funções que os hieróglifos podiam desempenhar: fonogramas, ideogramas e determinativos. Alguns sinais exerciam apenas uma delas. Outros podiam exercer, alternativamente, duas ou até mesmo as três funções. Aparentemente isso tudo poderia gerar uma infinidade de combinações e uma grande confusão. Na prática as mesmas palavras eram quase sempre escritas do mesmo modo.

Não havia regras fixas para a combinação das três categorias de sinais. Isso dependia dos usos e de tradições, as quais variaram ao longo do tempo. Entretanto, alguns princípios fundamentais permaneceram estáveis, como se segue:
1) Os sinais puramente ideográficos estavam essencialmente limitados aos nomes das divindades e aos termos do vocabulário fundamental. Frequentemente o ideograma é identificado como tal por um traço que o acompanha. Assim, o desenho de uma boca com o traço representa, ideograficamente, boca, fórmula, enquanto que o mesmo desenho sem o traço é o sinal alfabético para R;
2) Com muita frequência as palavras são escritas com a ajuda de fonogramas, geralmente seguidos de um ou vários determinativos, como já vimos nos exemplos dados acima. Assim, SeKHeR, que significa plano, diretiva, era escrito com os fonogramas S, KH e R, seguidos do determinativo de abstrato (um papiro selado);
3) Os fonogramas são correntemente empregados de forma redundante para explicitar parcial ou totalmente um ideograma, ou até mesmo um outro fonograma. A figura de um escaravelho pode significar, por si só, KHePeR, cujo sentido é nascer, vir a ser. Esse hieróglifo é frequentemente combinado com o sinal alfabético R e, nesse caso, não se lê KHePeR+R, mas apenas KHePeR, pois o R é uma redundância, ou seja, um complemento fonético. Os complementos fonéticos podem funcionar em vários graus. Um ideograma ou um fonograma de dois ou três sons podem ser explicitados por outros fonogramas. Por exemplo, a figura de um muro, ideograma para a palavra JeNeB, que significa exatamente muro, pode ser explicitado por JeN (um peixe) e o sinal alfabético B, enquanto que esse mesmo JeN é, por sua vez, explicitado pelos sinais alfabéticos J e N.

Se tudo isso parece confuso para você, com certeza não o era para os escribas. Ao escrever uma palavra ele poderia, na maioria dos casos, adotar um dentre vários métodos diferentes. Podia simplesmente escrever o ideograma, geralmente acompanhado por um traço vertical sob ele, indicando que aquele sinal tinha valor de ideograma. Com maior frequência, entretanto, ele usaria fonogramas seguidos por um ideograma, ou seja, por um determinativo que esclareceria o sentido geral da palavra. Quando existisse um sinal biliteral ou triliteral adequado o escriba o empregaria e, frequentemente, lhe acrescentaria alguns sinais alfabéticos, mesmo que estes já estivessem incluídos no fonograma. Tão incômoda e ilógica parece ser essa multiplicidade de sinais, — comenta o egiptólogo T. G. H. James — que é difícil de entender o processo de raciocínio pelo qual eles evoluiram, e ainda mas difícil de imaginar porque teriam continuado com tão pouca alteração durante um período de tempo tão longo.

Conforme já dissemos, os egípcios não escreviam as vogais. Elas apenas eram grafadas quando eram semiconsoantes, ou seja, quando exerciam função de consoante. Tal fato não é surpresa para o mundo moderno que conhece as línguas árabe e hebraica, as quais também não escrevem as vogais. Porém, como diz com muita graça o escritor Federico Mella, em caso de necessidade, há sempre um árabe ou um israelense por perto para tirar-nos as dúvidas, ao passo que entre nós não existe nenhum antigo egípcio para nos ensinar. Na maioria dos casos as vogais não eram escritas e torna-se difícil para nós, e frequentemente impossível, imaginar qual teria sido a pronúncia correta de tais palavras. Quando viável, os estudiosos baseiam-se nas palavras coptas correspondentes. Vejamos os exemplos dados por aquele autor: O deus de Tebas se escreve IMN. Eis por que os gregos chamavam de Amenófis, Amenmenes, etc., os faraós que traziam nomes a ele dedicados; é provável que a dicção certa fosse Amen, como prefixo, e Amon sozinho. Outro exemplo é o nome de Nefertiti que se escrevia NFRTIITI, obviamente de difícil pronúncia. Visando somente superar estas dificuldades fonéticas, espalhou-se o uso de inserir entre as consoantes a vogal E e até mesmo outra se possível. Por esta razão nós chamamos a bela rainha Nefertiti ou Nefertite. É provável que a dicção mais adequada seja Nofretiti. Mas trata-se apenas de um método circunstancial, ao qual se recorre na falta de apontamentos, isto é, quase sempre; e também não constitui norma. Por exemplo, o nome do deus de Mênfis se escreve PTH, e se lê comumente PTAH, e não Peteh ou Petehe. Acrescentamos que esse H era áspero, mas permanece o fato de que não sabemos como soava no idioma egípcio — salvo em poucas exceções de que se tem conhecimento. E o autor conclui: Deparamos com diversas dificuldades diante da escrita etrusca: podemos lê-la, mas não traduzi-la. Aqui, pelo contrário, podemos traduzi-la, mas não pronunciá-la. Isto causa com frequência muitas desigualdades na maneira de escrever os nomes dos faraós e das cidades.

NOTA: O nome de Ptolomeu era escrito PTOLMIIS. O de Cleópatra era grafado QLIOPATRAT. O T final era uma desinência feminina, comum a todos os nomes femininos egípcios, o que também se usava em copta e Champollion bem conhecia.
O último sinal, um ovo, enfatizava novamente que se tratava de uma mulher.



A Pedra de Roseta
A Decifração dos Hieróglifos — Parte 1

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